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O outro lado da cidade

 

A cidade começa a recolher-se a casa. Os candeeiros da avenida tremeluzem aguardando o espelho da lua refletido na baía.

Nas paragens de autocarros já não se ouve a algazarra dos miúdos das escolas. Os últimos passageiros do dia, são mulheres de meia idade, rosto cansado, escondido por dentro dos casacos compridos, puídos pelo trabalho e corroídos pela pobreza. Vêm das limpezas de escritórios e bancos em cujos cofres guardam dívidas e sonhos que nunca hão-de realizar. Na mão levam o jantar da família que preparam, exaustas, ao chegarem a casa.

A cidade despede-se de toda esta gente que movimenta o pouco comércio e serviços, sem um obrigado ou um boa noite e até outro dia. Prefere o silêncio da calçada vazia e o canto das gaivotas que pairam sobre traineiras sossegadas e barcos de recreio atracados aos pontões do porto.

No centro, a Torre da Matriz canta horas e minutos, mas não há quem atente na melodia sempre igual - nem mesmo os taxistas, ensonados que dentro das viaturas se resguardam do frio, enquanto o avião não chega de Lisboa com um passageiro para longe, que salve a miséria dos fretes do dia.

É uma cidade de ninguém, apenas com passos denunciados no circuito junto ao mar. Do alto das torres, uma luz aqui, outra ali, sinalizam visitantes e residentes. As esplanadas da avenida estão abertas para ninguém e os restaurantes, de mesa posta, decoram o ambiente taciturno, mas não exalam aromas de manjares apetitosos que atraem os esfomeados.

No meio do escuro, ouço dois homens, sentados num banco escondido, resguardando a velhice em sobretudos antigos e chorando mágoas:

-“A minha reforma mal dá para pagar os remédios, muito menos os da minha senhora. Não fosse a magra reforma dela e nem sei como seria!... O que vale é que, na nossa idade, já não comemos muito: uma sopinha ao almoço, um chàzinho ao jantar com torradas...e chega p'rà gente ir passando enquanto Deus não nos levar...o bom era irmos juntos!...” – rematava com voz embargada o mais idoso. Ao que o outro respondeu: “E ainda dizem que vão aumentar o cheque pequenino em dois euros. Mas p'ra que é que isso dá? Se tivessem vergonha nem anunciavam aquilo na televisão!... Pobre é sempre pobre! - já dizia meu pai. Quem é pobre nunca chega a rico...”

O diálogo entre os dois homens, no recato do jardim virado para a silenciosa baía, calou o silêncio da noite. Fiquei gelado com a conversa aberta e sensata dos dois idosos e só me apeteceu gritar aos senhores da cidade para que viessem ali ouvir o clamor dos pobres.

Como é que os donos deste mundo, não se apercebem das mais básicas necessidades alheias e não lhes dão resposta?

Continuei, calçada abaixo, olhando candeeiros junto ao mar iluminando ninguém, gaivotas divertindo-se sobre as ondas, construções antigas dos senhores da laranja e prédios modernos dos tempos da abundância, igrejas iluminadas por fora, mas com uma débil chama no interior,  alguns sem-abrigo aconchegados em cartões, protegidos por montras iluminadas, e o castelo fechado, com canhões desativados, de sentinela à porta d'armas.

No extremo do largo, onde João Paulo II, em maio de 1991, orou perante a imagem do Senhor Santo Cristo, o busto de Teófilo de Braga. Este micaelense ilustre, segundo Presidente da República, depois do picoense Manuel de Arriaga, está pr'ali desprezado. Será porque foi um republicano convicto que recusava honras e ostentações e andava proletariamente de eléctrico, com o guarda-chuva no braço ou de bengala já sem ponteira 1.), ou por ter sido autor de uma extraordinária obra literária e de investigação histórica e etnográfica que ainda hoje é referência importante nas letras portuguesas?

O sereno da noite entrava-me nos ossos. Amedrontado pelas sombras do tempo, observei o monumento ao Emigrante - exaltação à valentia e ao espírito de risco de tantas famílias anónimas que acreditaram noutra vida para além da ilha.

É tempo de regressar a casa. A cidade já não é agradável!...

1.) http://pt.wikipedia.org/wiki/Te%C3%B3filo_Braga

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